Ao se pronunciar pela primeira vez sobre o assassinato de Ághata Felix, 8, o governador Wilson Witzel (PSC-RJ) falou em “caso isolado” e afirmou que não se pode transformar a morte de crianças em “palanques eleitorais”. Especialistas discordam. “Toda morte provocada por agentes do Estado se trata, sim, de um tema da política. O assassinato de Ághata é efeito de uma política de morte que o estado do Rio está implementando”, afirma a professora Haydée Caruso, da UnB (Universidade de Brasília).
Para a pesquisadora – que atua no do Núcleo de Estudos sobre
Violência e Segurança da UnB –, o caso está longe de ser “isolado” e, ao
contrário, “confirma uma lógica de atuação da polícia, que está submetida às
diretrizes do governo” Witzel. “Nessa lógica, o que mais importa é caçar
criminosos sem ter o menor critério de como a polícia possa agir, inclusive em
áreas de alta concentração populacional. É uma escolha desastrosa, mas ainda
uma escolha”, diz Haydée.
“O trabalho da política é um serviço público. É natural que [a discussão] se
faça sobre o âmbito da política, é uma discussão de toda a sociedade”, afirma
Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz. Segundo ele, o discurso do
Executivo interfere diretamente na ação policial – e, nesse ponto, Witzel merece
as críticas que recebe. “Ele tem escolhido um discurso de guerra, de que
policiais têm de ir ‘pra cima’ e que o os criminosos devem ser abatidos,
morrerem com tiro na cabeça. Isso é lido na ponta da linha pelos policiais e
tem uma consequência”, argumenta Langeani.
Nos primeiros oito meses de governo Witzel, 1.249 pessoas foram mortas pela
polícia no Rio de Janeiro – uma alta de 16% em comparação ao mesmo período de
2018 e o maior patamar desde 1998, de acordo com o instituto. Do total, cinco
eram crianças. “Claramente, esse crescimento no número de inocentes mortos nas
favelas do Rio por forças do Estado é resultado de uma opção política”, afirma
Flávio de Leão Bastos, professor de Direito Constitucional da Universidade
Presbiteriana Mackenzie. “Uma das principais provas disso é que não há um morto
em áreas de milícia. Se fosse ao acaso, teria também nessas áreas.”
Outro ponto, diz ele, são os helicópteros que atiram “a esmo” nas comunidades
carentes da cidade. “A própria Secretaria de Segurança já disse que só poderia
haver disparos quando o agente é atacado – mas não é o que acontece”, pondera
Bastos. “Isso tudo é, sim, resultado de uma escolha política – feita pela
população eleitoralmente, aliás”.
Embora o governador tenha questionado o uso político do caso, os especialistas
lembram que segurança pública foi uma das bandeiras eleitorais de Witzel ao se
eleger no ano passado e tem sido um de seus principais assuntos também no
Executivo. “Se ele elegeu o tema da segurança pública como bandeira principal,
não pode escolher quando quer tratar e quando não quer tratar do assunto. Ele
próprio optou por esse campo de jogo”, lembra Langeani.
“Witzel fez isso ao descer do helicóptero comemorando. A ação da polícia foi
acertada, o erro foi dele: não se comemora a morte de ninguém”, afirma Bastos,
ao se referir ao caso do sequestro do ônibus na Ponte Rio-Niterói no final de
agosto. Minutos após a resolução do caso, quando o sequestrador foi baleado,
Witzel chegou ao local festejando, com os punhos cerrados. A cena foi divulgada
por toda a mídia. “Se ele desce de um helicóptero comemorando e depois faz uma
coletiva para ganhar os louros de uma ação que tecnicamente foi correta, é
normal que as pessoas critiquem quando não for”, argumenta o gerente do Sou da Paz.
Inteligência, não agressividade
Para os especialistas, o governo está no caminho errado no combate à
criminalidade, que deveria ser mais focado em operações policiais que usem
inteligência integrada do que no uso de força contra populações mais carentes.
“Não há inteligência nas operações do Rio”, critica Bastos.
Ele menciona o caso Ághata: “O agente de segurança atira no motoqueiro que
furou um bloqueio e acerta uma Kombi. Dezenas de moradores dizem que só ele
atirou. Para uma força armada oficial, isso não é admissível. Se essa operação
foi executada sob padrões de inteligência, não sei o que é inteligência”.
Segundo Bastos, “o Estado não pode matar. O Estado não pode errar, não tem esse
direito”.
Langeani dá exemplos de operações de apreensão que usaram técnicas de
inteligência policial e forças de diferentes órgãos para realizar apreensões
bem-sucedidas, como nos casos dos 60 fuzis no Aeroporto do Galeão em 2017 e das
48 pistolas na Rio-Santos no último sábado (21).
“Nenhum tiro foi dado. Se somar as duas operações do Rio só na semana passada
, foram dez mortos – dois deles policiais – e
não teve o mesmo resultado”, argumenta. “Em contrapartida, arrisca os policiais
de forma desnecessária, há mortes e cria um risco gigantesco para a população
civil. Não só de levar tiro – mas também para quem não vai ao trabalho, não
leva a filha para a escola. O custo é muito alto”, diz.
“Este modelo não é viável. O sinal que a polícia está nos dando é: isso
aconteceu porque estava com foco em A e, infelizmente, B passou na frente.
Logo, mortes como esta podem acontecer. Mas não pode acontecer! A polícia tem
superioridade de método e técnica – eles não são apenas um bando armado”,
argumenta Caruso.
“Óbvio que há mortes todos os dias pela ação de delinquentes, mas o que
esperamos da polícia é que ela não seja este agente. Não dá para comparar mortes
por bandidos com mortes pelas forças estatais. O que se espera é que ela tenha
destreza e preste contas, mas não é o que acontece – e esse caminho não nos têm
tirado do buraco. Se fosse, o problema já tinha sido resolvido”, conclui Haydée
Caruso.
Fonte: O Vermelho