MST é peça chave para atingir a soberania alimentar, diz nutricionista

Foto: MST Divulgação

Soberania alimentar é sobre escolhas, sobre não se escravizar a outros países no que diz respeito à alimentação; o MST, como produtor nacional de alimentos orgânicos, é fundamental para o atingimento dessa meta.

Nutricionista há 40 anos, Marta Moeckel tem se debruçado sobre os estudos da alimentação coletiva, tendo como pano de fundo a organização popular. Para isso, escolheu o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra para traçar uma análise do método de planejamento da cozinha coletiva e suas relações com o processo de alimentação.

Para além do consumo de alimentos, ela explica que é necessário ter uma perspectiva social sobre a alimentação. “O alimento está intrinsecamente ligado a todas as questões sociais, econômicas e políticas, principalmente”, diz.

O assunto foi tema de sua tese de doutorado, “Alimentação coletiva na perspectiva da organização do MST”, defendida na quarta-feira (16) junto ao Programa de Pós-graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Em entrevista ao programa Bem Viver, Moeckel fala sobre as implicações da alimentação para além do consumo e as reflexões de sua tese sobre o modelo organizacional de cozinha coletiva do MST. Confira:

Brasil de Fato: Explica para a gente um pouco sobre as principais reflexões levantadas pela sua pesquisa.

Marta Moeckel: Foram muitas. Na verdade, meu filho é militante do MST e a gente conversa muito sobre movimentos sociais, e sobre todo este modo de viver contemporâneo, e até a própria ciência da nutrição que, para mim, às vezes me parece um pouco reducionista. Então, nas conversas surgiu aí a questão da alimentação.

Primeiro a questão da cozinha nas ocupações, em que ele contou que a cozinha era a primeira coisa que era montada numa ocupação. A preocupação primeira era estar ali, ter a cozinha para alimentar as pessoas.

Então isso já me chamou, já me deu um alerta. E aí falamos sobre marchas e eu fiquei pensando uma coisa que eu nunca tinha pensado. Como alimentar as pessoas numa marcha de 200 quilômetros? Como ter alimentos durante todo esse tempo durante o dia inteiro? Elas montando, desmontando, montando e desmontando (o acampamento).

Então o objetivo da minha tese foi investigar esse processo organizativo da cozinha, da alimentação do coletivo do MST. E à medida que eu fui pesquisando, eu fui ficando fascinada porque eu pude comparar o processo. Assim como estive com o João Pedro Stedile em 2018 falando sobre a minha pesquisa e ele falou assim pra mim: – Você sabe Marta, que eu fui chamado em Brasília por um general e eu não sabia porque?  Eu cheguei lá e perguntei: – Eu naõ estou entendendo porque eu estou aqui. E aí o general falou: – Eu preciso que você explique como vocês conseguem alimentar 12 mil pessoas andando, caminhando, e a gente como um exército, a gente não consegue fornecer uma alimentação adequada como vocês fornecem.

Então isso tudo, durante a minha pesquisa, eu fui ficando fascinada. Muito pelo trabalho cooperativo, pela transformação social que é incrível. Pela importância do método de planejamento, os princípios organizativos aplicados em tudo no MST, e na cozinha também.

E também todo o envolvimento com alimento, com a terra. Então acho que foram muitas as reflexões e durante a minha pesquisa até pensei:  – Nossa se isso tudo fosse aplicado em tudo o que a gente faz, como seria diferente o nosso Brasil, pelo menos.

A gente percebe que a alimentação coletiva vai muito além do consumo de alimentos. Ela está relacionada com diversos fatores econômicos, sociais, culturais e políticos. Como você percebe essa relação do MST com a alimentação?

Então, o alimento está muito intrínseco ali nessa luta pela terra, porque o que eu vejo é que o MST começa sua luta por terra, realmente. Por adquirir terras que a pessoa pudesse morar e tudo o mais. Mas no decorrer da história do MST essa luta não é só por terra, mas a luta por produzir alimentos. E como diz o Stedile, não é só para produzir qualquer alimento, são alimentos saudáveis. Então a questão da agroecologia também, toda essa formação do MST, eu acho que é super importante. O alimento está intrinsecamente ligado a todas essas questões sociais, econômicas e políticas principalmente, como você falou.

Nesse momento de aprofundamento de diversas crises, especialmente com o crescimento da miséria e da fome nos últimos anos, a gente pode dizer que fortalecer a luta pela terra, é também lutar contra a fome?

Na verdade é uma continuidade. A luta pela terra e a fome já existem há muito tempo. Quando lá na década de 1980 o MST foi formado, vinha de lutas anteriores. Eles se consideram uma continuidade das lutas anteriores. Então lá no início do século 20 a forma já era persistente. Então, é isso que eu gosto de passar para os meus pares. Essa história da alimentação, da busca pela terra, da busca por alimentação mesmo. O problema da fome existe há muito tempo, então essa luta, é uma luta contínua. E a gente está vendo aqui no ano de 2020, voltando ao mapa da fome e à desnutrição.

Me formei nutricionista na década de 80. Tenho 40 anos de formada. A gente trabalhava com a fome e com a miséria e com a desnutrição. Esse era o maior problema do Brasil e a gente retoma tudo isso. Então a luta pela terra está intrinsecamente ligada à questão da fome. Enquanto  a gente lutar pela terra, lutar pela produção de alimentos saudáveis, a gente está combatendo a fome. Com certeza esse é meu pensamento.

Percebemos nos últimos anos uma busca maior pela aproximação e resgate de alimentos tradicionais, de uma alimentação mais saudável. A que se deve isso?

Eu acredito que seja pela consciência das pessoas. Embora a maioria das pessoas, como a gente viu agora na pandemia, que aumentou absurdamente o consumo de alimentos “não saudáveis”, mais fast food, consequentemente mais lixo, geração de resíduo, de plástico.

Então, embora a maioria ainda tenha a praticidade como o seu objetivo, tem muita gente que já tem uma consciência. De consumir um alimento saudável em todos os sentidos. Saudável em termos de onde ele é produzido, quem produz e a quem ele beneficia, o entorno. Então é exatamente essa questão da sustentabilidade como um todo. Eu acho que existe realmente uma maior consciência das pessoas, e nessa pandemia houve uma busca maior ainda desse resgate da alimentação tradicional.

Com base na sua pesquisa e reflexões, quais práticas o MST tem a nos ensinar para uma alimentação mais saudável e de caminhos para a soberania alimentar?

Eu acho que o MST tem muito a ensinar! Acho que todo esse caminho percorrido por essa organização tem muito a ensinar. Mas eu acho que a produção de alimentos, seguindo os métodos de agroecologia e o amor à terra, o amor ao alimento, eu acho que isso é inegociável.

Eu acho que é isso que traria para todos um bem estar e saúde. Se as pessoas tivessem essa consciência. Muito do que observei, do que li e  conversei com várias pessoas, essa consciência política que é importante, e que faz com que você tenha um caminho a seguir, um objetivo.

O MST tem muito muito a nos ensinar com relação a isso. A soberania alimentar tem a ver com escolhas. Então, o José Martí (revolucionário cubano, 1853-1895) nos falou que um povo que não produz seu próprio alimento, é um povo escravo. É escravo de gente de outros países, escravo de todas as formas, de alimentos oriundos de outros lugares. Então eu acho que a produção de alimentos nos assentamentos é o que vai nos trazer melhorias em termos de soberania alimentar.

Fonte: Brasil 247