Este artigo tem por objetivo debater, a partir de dados e referências históricas, a situação atual do sistema carcerário brasileiro, levando em conta episódios históricos marcantes na história penal brasileira, bem como métodos de análise qualitativos e quantitativos. Com isso, vamos oferecer um debate consistente acerca da importância de se garantir o trânsito em julgado e a presunção de inocência antes de determinar a prisão do réu.
O sistema carcerário brasileiro está entre os três mais populosos do mundo, superando a Rússia (706 mil) e ficando atrás apenas de China (1,65 milhão) e Estados Unidos da América (2,3 milhões). Essa superlotação, casada à péssima estrutura das penitenciárias, é tema de debate em diversos fóruns de direitos humanos pelo mundo inteiro. O próprio subcomitê de tortura da ONU recomenda que o Brasil trabalhe na humanização de seus presídios, reformulando o sistema carcerário como um todo.
A falta de estrutura, não está só no âmbito da manutenção da vida dos detentos dentro do cárcere – mas também no controle das unidades por parte do governo, que muitas vezes tem um número ínfimo de agentes penitenciários a disposição. Assim, facções dominam os presídios e operam suas atividades ilícitas de dentro das celas e pavilhões.
A consequência é um sistema totalmente desestruturado, incapaz de reabilitar e reinserir na sociedade os detentos, causando um efeito de aprimoramento das características contraventoras dos presos, não gerando expectativa de uma nova vida. Eles são reposicionados na sociedade e retornam às ilicitudes, muitas vezes regressando em pouco tempo para o sistema carcerário.
Esse ciclo de violência, causado pela irresponsabilidade estatal com a vida dos detentos e da sociedade como um todo, é rodeado por uma série de rebeliões violentas ao longo da história do Brasil. Essas rebeliões, potencializadas pela falta de estrutura das casas penitenciárias, são capitaneadas por facções criminosas, que utilizam da revolta dos detentos para desestabilizar o sistema e assassinar rivais. A falta de preparo da polícia para lidar com essas situações corrobora em intervenções extremamente violentas e ineficazes, espalhando uma onda de mortes por todo o sistema.
O Massacre do Carandiru
Um exemplo claro de rebelião onde o Estado não soube atuar e intensificou a violência foi no muito conhecido Massacre do Carandiru, uma das cenas mais críticas da história penal brasileira, que deixou dezenas de mortos e escancarou a situação dos presídios brasileiros para o mundo. Situado na zona norte de São Paulo, o Carandiru abrigava, na década de 1990, mais de 7.200 detentos e era o maior complexo penitenciário da América Latina.
Em 2 de outubro de 1992, iniciou-se em seu interior uma grande operação para conter a rebelião gerada por uma briga em uma partida de futebol. Dois detentos passaram a discutir o resultado de uma falta. No calor da discussão, começou-se uma briga, seguida de uma rebelião que tomou um pavilhão inteiro do complexo do Carandiru, rompendo com o controle policial e instaurando o caos na unidade.
Um total de 325 policiais fortemente armados com metralhadoras, fuzis, pistolas, bombas de gás lacrimogêneo, efeito moral, gás de pimenta e cães adentraram o Pavilhão 9, que na época tinha mais de 2 mil detentos. Iniciaram, assim, a ação que culminaria na morte de mais de 111 detentos, de acordo com a Polícia Militar. Ainda sobre o número de mortos, há uma clara divergência entre as estatísticas afirmadas pela polícia e depoimentos de ex-detentos – segundo os quais o número de mortos passou de 200.
As vítimas foram colocados em carros policiais, caminhões de lixo e ambulâncias pelos presos sobreviventes ao massacre. Conforme um dos peritos criminalistas do Departamento Estadual de Polícia Científica, foi encontrado com os presos um total de 13 revólveres, 12 estiletes, 25 canos de conduite usados como bastão e 175 espadas artesanais. Ainda segundo a perícia, a cena do crime foi adulterada na manhã do massacre, dificultando o trabalho de investigação.
Foram disparados 515 tiros, sendo 254 no tronco e pescoço e 126 na cabeça. De acordo com o jornalista Caco Barcelos – que se debruçou a analisar 33 tiroteios envolvendo a Polícia Militar de São Paulo –, a tática policial mais recorrente em eliminações é a de tiros a queima-roupa na região do tronco e cabeça, sendo em grande parte das vezes com a vítima rendida e desarmada.
No Carandiru, os mais de 2 mil presos do Pavilhão 9 ficavam divididos em 248 celas apenas, uma média de oito presos por cela. Essa política desumana de maus-tratos aos indivíduos do sistema penitenciário vai contra o inciso 3 do artigo 1º da Constituição, que assegura a “dignidade da pessoa humana’’, como valor fundamental da República.
Já o artigo 196 código Civil prescreve: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação”.
Com um número exorbitante de presos por cela, a proliferação de doenças transmissíveis se propaga de maneira absoluta e por muitas vezes irremediável. Essa situação transgride também a Norma 7.210 do Código de Execução Penal. “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”, diz esse documento legal. Além disso, “ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”.
As dezenas de contravenções aos direitos civis por parte do Estado, bem como as de cunho criminal, por conta dos assassinatos gerados pelo massacre, foram devidamente registradas em um processo de mais de 150 volumes. Mais de 85 policiais foram denunciados.
No decorrer do processo, foi condenado apenas o comandante da operação, Coronel Ubiratã Guimarães, a 6 anos por 102 presos assassinados, o que somou mais de 630 anos de regime fechado para o Coronel. Mesmo assim, em 2006 o coronel foi posteriormente absolvido pelos crimes e viveu em liberdade até sua controvérsia morte, no mesmo ano, derivada de um disparo na cabeça de sua arma de fogo.
A situação carcerária do Brasil
De acordo com o levantamento feito pelo Depen (Departamento Penitenciário Nacional) em 2018 e veiculado pelo portal de notícias do G1, os números de detentos no Brasil ultrapassam os 750 mil. A superlotação carcerária – hoje de 400 mil presos – vem aumentando de maneira progressiva desde 2017, como vemos no relato do G1.
Os dados veiculados pelo portal de notícias nos apontam um total de 754,2 mil presos em todo o Brasil – incluindo os que cumprem regime aberto, e os que aguardam transferência nas carceragens das delegacias de polícia. Só que as prisões brasileiras têm capacidade para abrigar cerca de 415,9 mil presos, tendo, portanto, um número de mais de 288 mil a mais, o que representa 69,3% acima de sua capacidade ideal.
Os estados com maior lotação de penitenciárias são: Pernambuco (178,6% a mais que sua capacidade ideal), seguido por Roraima (166,2%), Amazonas (136,8%), Distrito Federal (125,8%) e Mato Grosso do Sul (117,3%). Hoje o número de detentos provisórios (aqueles que ainda aguardam o julgamento de seus processos) soma cerca de 252,5 mil dos mais de 700 mil presos, o que corresponde a 36% do sistema carcerário. Em 2017, havia 668 mil presos e 394 mil vagas (lotação de 69,2%) dos quais 37,6% correspondiam aos presos provisórios. No ano de 2018 o total de detentos era 686 mil, para apenas 407 mil vagas (68.6% de lotação), e 34,4% dos presos eram provisórios
Como apontado nos dados acima, o sistema prisional brasileiro passa, há muitos anos, por um processo de esgotamento de sua capacidade estrutural – e vem cada vez mais se tornando insustentável. Mais de 35% desses presos ainda não tiveram seus julgamentos finalizados e seguem – às vezes por meses ou até mesmo anos inteiros – aguardando sua sentença atrás das grades. Mais de 1/3 do sistema carcerário é formado por réus primários, que por muitas vezes acabam por sair sem perspectivas, doentes e até mais envolvidos com o mundo do crime do que antes da prisão.
Na busca por alternativas para um sistema penal e carcerário mais eficaz no combate ao crime, vem sendo debatido pelo Supremo Tribunal Federal e pelos juristas brasileiros, a viabilidade da prisão decretada para processos que estão ainda em segunda instância, antes do trânsito em julgado. Antes de partir a esse debate, gostaria de apresentar mais um fato da história recente do Brasil, em que a péssima situação carcerária resultou em rebeliões.
A rebelião no presídio em Altamira
Recentemente, no dia 29 de julho de 2019, uma rebelião causada por brigas entre facções rivais deixou 62 mortos dentro da penitenciária de Altamira, no interior do Pará. O complexo contava com 343 presos – mais que o dobro do número recomendado pelo Depen, que era 163. Para manter a ordem, o sistema possuía apenas 33 agentes penitenciários – o que corresponde a um único policial para cada 10 detentos.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, um padre que se encontrava preso no momento da rebelião declarou: “Aqui não é humano. Uma cela de 2 metros, que normalmente se destinaria a um preso, era na verdade utilizada para manter quatro de uma vez só”.
A rebelião, originada pela disputa de duas facções sobre o controle do presídio, terminou com uma guerra violenta brutal onde foram mortos 62 detentos. Destes, 16 foram decapitados. É importante ressaltar que 26 dos mortos em Altamira eram presos provisórios e aguardavam suas sentenças.
A falta de estrutura não é a razão motriz para as guerras entre facções criminosas. Mas o enraizamento das facções nos presídios está ligado à limitada tecnologia e estrutura com a qual o Estado administra essas unidades. A falta de controle precede a falta de habilidade para controlar. Tudo isso, somado às condições insalubres, alimenta a revolta dentro dos seres humanos submetidos ao cárcere, causando enorme prejuízo à vida dos detentos, dos policiais e demais funcionários da unidade carcerária, bem como da comunidade ao redor.
As organizações criminosas dentro dos presídios brasileiros afetam, inclusive, a própria legitimidade do sistema e do cumprimento às leis brasileiras. De que adianta termos tantas prisões se elas servem muitas vezes de “quartéis generais do crime’’, onde as facções exercem livremente suas atividades e aumentam seus lucros de dentro das estruturas financiadas pelos contribuintes brasileiros?
Das prisões em segunda instância
Num sistema em que a ideia de ressocialização está completamente falida – e no qual inúmeros presos ainda não foram julgadas e estão sofrendo as mazelas desse sistema –, é preciso garantir a presunção de inocência para que se evite condenar pessoas que podem ser inocentes a essas condições. De acordo com dados do Superior Tribunal de justiça veiculados no G1, há cerca de 5 mil processos que estão em segunda instância e aguardam o julgamento de recursos deferidos pelas defesas.
Recentemente, uma decisão do STF contra a prisão antes do trânsito em julgado do processo vem sendo tema de debate na comunidade jurídica. A Corte se apoiou no artigo 5º da Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Neste artigo, nossa Constituição determina categoricamente que a presunção de inocência deve ser respeitada, e o réu tem direito a todos os recursos cabíveis para que seja provada – ou não – sua inocência perante aos tribunais. É necessário, ainda, diferenciar a prisão em segunda instância da prisão preventiva – um dispositivo legal usado para encarcerar réus que apresentem perigos à investigação, à sociedade ou pegos em flagrante em seus delitos. No caso de algum réu que apela à segunda instância, mas está em prisão preventiva, sua liberdade será subtraída, mesmo com os recursos pendentes, em razão das condições passíveis de prisão preventiva no caso.
Na prática, como diversos direitos fundamentais são transgredidos dentro das penitenciárias brasileiras, faz-se ainda mais necessário garantir a presunção de inocência. Uma vez que esse sistema é prejudicial à saúde, à dignidade e à vida das pessoas que, culpadas ou não, estão submetidas a ele, é de imensurável injustiça colocar alguém que pode ser inocente sob essas condições.
Nossa constituição é clara, no artigo 5º, inciso III: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante’’. Com base nisso, podemos reforçar três ideias: 1) Não se deve submeter os detentos aos tratamentos e estruturas desumanas das unidades penitenciárias; 2) É inconstitucional o modo como são tratados os detentos no Brasil; 3) Deve-se garantir a integridade de todas as pessoas em nossa sociedade.
Considerando nosso escopo jurídico atual e a situação das cadeias no Brasil, é totalmente inconcebível que os réus em segunda instância – em que ainda se busca condenação ou absolvição – sejam submetidos a essas estruturas antes do trânsito em julgado, antes que se esgotem os recursos e o Poder Judiciário possa usar toda a sua ótica de Justiça para analisar e definir o caso.
O Brasil é um país de muitas injustiças, e o sistema judiciário deve ser a instituição nodal na construção de uma sociedade mais justa. Com penas mais justas e com o princípio da ampla defesa, esse sistema pode nos levar à justiça conclusiva, acertada e legítima.
* Anderson Ribeiro de Freitas é diretor do Diretório Central dos Estudantes da Universidade de São Paulo (DCE Livre da USP)
Fonte: O Vermelho