A ascensão da extrema-direita dentro e fora do Brasil e a ignorância sobre o que foi o regime geram terreno fértil para a disseminação de ações que flertam com o nazismo.
O trauma causado pelos horrores do nazismo e da Segunda Guerra Mundial e o empenho para manter viva a memória e o rechaço à barbárie daqueles anos pareciam ser suficientes para deixar essa ideologia limitada aos livros de história. No entanto, seus seguidores continuaram existindo e, com a ascensão mais recente da extrema-direita em vários países, eles parecem ter se sentido encorajados a defender o indefensável de maneira mais escancarada.
No Brasil, o bolsonarismo, apoiado no vale-tudo das redes, contribuiu para a banalização da violência, do ódio, do autoritarismo e do preconceito, criando um terreno fértil para manifestações de feição fascista e nazista irradiadas a partir do próprio governo.
Desde o início do mandato de Jair Bolsonaro (PL) foram muitas as notícias envolvendo manifestações nazistas de toda ordem. Para citar apenas alguns exemplos mais emblemáticos dentro do próprio governo, o então secretário especial da Cultura, Roberto Alvim, gravou um vídeo no qual imitava Joseph Goebels, ministro da propaganda de Hitler.
A imagem de Bolsonaro, em uma live, bebendo leite — símbolo neonazista usado por supremacistas brancos dos Estados Unidos — é outro exemplo grotesco dessa relação, assim como é importante recordar a inconteste semelhança entre o slogan bolsonarista “Brasil acima de tudo” com o “Alemanha acima de tudo” (Deutschland über alles) do nazismo.
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Mais recentemente, em especial durante o período eleitoral, pulularam notícias de manifestações de cunho nazista. A descoberta de grupos em Santa Catarina; a saudação “sieg heild”, com a mão direita estendida, feita por bolsonaristas à bandeira brasileira no mesmo estado; casos envolvendo estudantes do interior de São Paulo e de Sergipe e a infame sugestão, em uma cidade do interior gaúcho, de que comércios de supostos eleitores de Lula fossem marcados com uma estrela — como outrora foi feito por nazistas contra judeus —, são alguns exemplos.
De acordo com Adriana Dias, antropóloga que pesquisa grupos nazistas no país, o número de células desse tipo saiu de 75 em 2015 para ao menos 530 em 2021. Não à toa, diante desse cenário, o escritor judeu Michel Gherman classificou o Brasil como uma espécie de “Disneylândia do nazismo”.
Naturalização do nazismo
“Há anos enfrentamos a normalização de eventos neonazistas e fascistas, o que vemos hoje é a consequência desse processo de não frear o espalhamento da gramática nazista, adotado frequentemente pela extrema-direita”, avalia a jornalista e coordenadora de Comunicação do Instituto Brasil-Israel, Anita Efraim.
Ela destaca ainda que “o Brasil é um país que adotou a anistia como marca da história. Tudo que aconteceu de ruim no nosso passado, em especial na ditadura, foi anistiado. A cultivação da memória, em especial enquanto ferramenta de aprendizagem, não é estimulada no país. Por isso, vemos a repetição de fatos históricos bastante assustadores – como a reprodução da saudação nazista, sob a justificativa de que se trata de ‘respeito à bandeira’, ou a identificação de comércio de ‘esquerdistas’, o que nos rememora a Noite dos Cristais”, uma onda de ataques violentos e prisões de judeus ocorrida em novembro de 1938 na Alemanha e na Áustria.
Na avaliação de Alexandre Almeida, professor da especialização em Direitos Humanos da Universidade Federal do ABC e pesquisador do Observatório da Extrema Direita, compõem esse cenário o profundo desconhecimento e certa relativização do nazismo, além do “acirramento dessa ideia do nós contra os outros, de que o Brasil realmente está dividido e nunca mais vai ter um processo de aproximação”.
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Almeida destaca que essa relativização do nazismo está diretamente ligada à cultura pop. “Se a gente parar para pensar, sempre teve, na cultura pop, alguma referência ao nazismo, sempre da forma como ele é, negativo, mas ele está sempre ali aparecendo, num desenho animado, num filme, num quadrinho, numa música, ele faz parte do nosso imaginário, de maneira que mesmo as pessoas que se dizem nazistas não entendem profundamente o que é o próprio nazismo. Então acho que a questão da naturalização passa também por isso: o nazismo entrou para cultura pop sem ser devidamente problematizado”.
Além disso, Almeida salienta o papel da internet e em especial das redes sociais na propagação desse ideário. Ele defende que, sem apelar para instrumentos de censura, é preciso haver uma regulamentação que permita identificar e punir a apologia ao nazismo, além de uma “política que nos possibilite entender essas sementes”. Como professor, também defende o aprofundamento da educação a fim de informar e “desradicalizar” os jovens neste sentido.
Passo civilizatório
O combate ao ideário nazista e à sua naturalização é fundamental para a construção de um país baseado em marcos civilizatórios claros em defesa da igualdade, dos direitos humanos e contra atos de violência e opressão, propagados inclusive por aparatos do Estado — como as polícias militares — e apoiados por parte considerável da sociedade. Portanto, os desafios para os próximos anos não são poucos, nem pequenos.
“A partir do momento em que temos uma parcela significativa da população adotando a ideia de que ‘as minorias devem se curvar à maioria’, todas as minorias sociais estão em risco. Além disso, estamos sob o perigo do argumento de que há uma ‘banalização do Holocausto’: toda vez que são feitas comparações com o ocorrido na Segunda Guerra Mundial, há acusações de que estamos ‘banalizando’ as atrocidades cometidas pelos nazistas. Pelo contrário, a ideia de relembrar o ocorrido é evitar repetições, afinal, mesmo que os judeus tenham sido as maiores vítimas, houve também perseguição do regime nazista contra negros, homossexuais, comunistas, ciganos, testemunhas de Jeová e outros”, lembra Anita Efraim.
Para ela, a educação e a memória são o melhor caminho. “O Holocausto precisa ser lembrado sempre, para que nada parecido aconteça. É impossível não relacionar os casos recentes com o que ocorreu na Alemanha nas décadas de 1930 e 1940. Mas não podemos cultivar uma memória vazia, a lembrança serve para que evitemos a repetição. Nesse sentido, é preciso educar e mostrar quais as consequências práticas da intolerância e da ânsia por atacar pessoas que têm pensamentos políticos diferentes”.
Fonte: O Vermelho