ALCÂNTARA: LONGA MARCHA PARA UMA BASE

Lançamento do VLS-1 V02 em 1999

China, União Soviética, Rússia, Ucrânia e Argentina. Esses são alguns dos países que estabeleceram conversações com o Brasil para o uso da base espacial de Alcântara, no estado do Maranhão.

O presidente brasileiro Jair Bolsonaro se valeu desse processo longo para estabelecer, com o presidente norte-americano, Donald Trump, o Acordo de Salvaguarda Tecnológica (AST) que reabriu um debate que dura quase 20 anos no Congresso Nacional.

Está em questão o uso do melhor local do mundo para o lançamento de foguetes, por estar apenas dois graus ao sul da linha do Equador, onde a velocidade de rotação da terra é maior, o que resulta em menos 30% de combustível para colocar uma carga em órbita do que se lançado da Flórida, por exemplo, onde está situada a melhor base dos Estados Unidos, e num acréscimo de até 30% no peso transportado. Mesmo com essa vantagem, a tecnologia defasada limita o Brasil na exploração do local.

Conforme explica uma reportagem da agência de notícias DeutcheWelle, em 1983, quando foi lançado o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), havia a esperança de que o Veículo Lançador de Satélites (VLS) colocasse o Brasil em um mercado bilionário, que se encontra em franca expansão. No entanto, três falhas em tentativas de lançamento, em 1997, 1999 e 2003, fragilizaram o programa. No último acidente, 21 técnicos e engenheiros morreram.

Sem o desenvolvimento da indústria aeroespacial brasileira, diz a matéria, a utilização da base espacial ficou condicionada a parcerias com países mais desenvolvidos nesse setor. O primeiro passo nesse sentido foi dado em 2000, quando o então presidente, Fernando Henrique Cardoso (FHC), assinou o primeiro Acordo de Salvaguarda Tecnológica com os Estados Unidos. A DeutcheWelle relata que não foi um termo de transferência de tecnologia, mas de proteção da propriedade tecnológica dos artefatos espaciais estadunidenses.

Os Estados Unidos gozam de amplo domínio no mercado aeroespacial global, com participação de 80%, segundo a matéria. Pelo acordo de FHC, ficaria autorizado que equipamentos estadunidenses ou com peças desenvolvidas no país pudessem ser lançados de Alcântara. A principal contrapartida pela utilização da base seria o pagamento de royalties à União. De qualquer forma, com esse percentual de controle do mercado pelos Estados Unidos sem um acordo com aquele país o uso da base fica bastante limitado.

Mercado mundial

A proposta acabou engavetada no Legislativo e só voltou à tona em 2013, no governo da presidenta Dilma Rousseff, quando novamente foi para a gaveta com as revelações da espionagem da agência norte-americana NSA sobre a presidenta e a Petrobras. Após o golpe do impeachment de 2016, com José Serra à frente do Ministério das Relações Exteriores, o assunto foi retomado. Antes golpe, surgiram conversações também com a Ucrânia, atraída por seu bom domínio tecnológico herdado do período soviético. A crise daquele país com a Rússia inviabilizou o prosseguimento das negociações.

A reportagem da DeutcheWelle informa que em 2017 o então ministro da Defesa do governo Temer, Raul Jungmann, retirou o projeto de pauta no Congresso Nacional e reiniciou a negociação do acordo com os Estados Unidos. O texto que resultou desse processo deu as bases do termo assinado por Trump e Bolsonaro em março deste ano e do projeto atual em discussão no Congresso, com alterações importantes em trechos polêmicos do acordo anterior.

Foi retirado, por exemplo, o ponto que impedia a aplicação dos royalties pagos pelos Estados Unidos no próprio programa espacial brasileiro, mas continua vetada a permissão para utilizar esses recursos no desenvolvimento de mísseis. A matéria da DeutcheWelle diz também que, ao contrário do acordo anterior, que previa a limitação do acesso de brasileiros às instalações criando uma extraterritorialidade que feria a soberania nacional, neste fica especificado que Alcântara é uma base brasileira da Aeronáutica. Mas há etapas em que somente os técnicos dos Estados Unidos terão acesso, como em outros acordo semelhantes, a exemplo do celebrado pelos norte-americanos com a Rússia.

De todo modo, é um acordo melhor do que o anterior para o futuro da indústria aeroespacial brasileira, um mercado mundial que movimenta em torno de US$ 300 bilhões anualmente, sendo US$ 5 bilhões relativos a lançamentos. Os recursos provenientes da entrada do Brasil nessa corrida teriam um poder indutor sobre a indústria espacial em Alcântara, sobretudo com a construção de um polo de tecnologia em suas imediações, como o existente em São José de Campos (SP) para a indústria aeronáutica, onde está a Embraer.

Demônio nos detalhes

Carlos Moura, presidente da Agência Espacial Brasileira (AEB), vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, disse à DeutcheWelle que o acordo é apenas um primeiro passo para o estabelecimento de parcerias comerciais e outras iniciativas para desenvolver a indústria aeroespacial brasileira. Ele destaca que o texto não exige uma exclusividade com os Estados Unidos. “Se não fizermos o acordo, estamos nos limitando a apenas 20% do mercado aeroespacial mundial. Portanto, queremos ter o mercado mais aberto possível para desenvolver a capacidade de Alcântara”, diz.

O presidente da AEB destaca ainda que o acordo é necessário para manter a base em funcionamento. “Tecnicamente, o Centro de Alcântara ficará mais habilitado. Para uma base funcionar, é preciso ter uma série de sistemas tecnológicos funcionando, nas áreas de tratamento de dados, telemetria, radares, sistemas meteorológicos e de segurança de voo”, afirma.

O diplomata Marcos Azambuja, ex-secretário-geral do Itamaraty e atual conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), também vê vantagens no acordo. “Não adianta ter uma grande geografia e não ter tecnologia para lançamento. Alcântara é estupenda desde que lance foguetes. Então, precisamos da tecnologia dos Estados Unidos. Mas é um acordo que exige cuidado político, diplomático e precisão científica. Afinal, em diplomacia, o demônio mora nos detalhes”, disse ele à DeutcheWelle.

Um exemplo do que alerta o diplomata pode estar nas cláusulas ditas interpretativas do acordo. Se aprovado, diz a DeutcheWelle, o texto impediria o Brasil de autorizar a utilização de Alcântara por países sob sanção da ONU ou que não aderiram ao Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis. Este segundo grupo inclui a China, país que mais investe no Brasil e representa o principal concorrente dos Estados Unidos em disputas comerciais e tecnológicas.

Famílias quilombolas

Outro ponto importante abordado pela matéria é a situação das quase 800 famílias quilombolas que vivem no entorno da base e podem ser afetadas pelo projeto. São pessoas que já foram removidas de seus locais de origem na época da construção da base, em 1983. “Não somos contra o acordo e o avanço tecnológico. O que não aceitamos é mais remoção de famílias e expansão da área. Se o acordo não diz que não tem expansão, por que o governo não tem coragem de dar o título daquelas comunidades?”, questionou Antônio Marcos Diniz, liderança da Comunidade Quilombola Mamuna de Alcântara, em audiência na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados realizada em julho.

De acordo com o jornal maranhense O Imparcial, dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI) destacam a importância estratégica do acordo. Apenas em 2017, o setor movimentou, em âmbito mundial, US$ 3 bilhões, US$ 500 milhões a mais do que no ano anterior, segundo dados da Administração Federal de Aviação dos Estados Unidos, compilados pela CNI. Estima-se uma média de 42 lançamentos comerciais de satélites por ano até 2026, o que torna positivo o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas entre Brasil e Estados Unidos, em especial pelo potencial de atração e geração de negócios em torno do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA).

A indústria local ganharia um grande impulso, segundo o diretor do CLA, coronel Marco Antônio Carnevale Coelho. “O projeto que idealizamos para Alcântara tem as mesmas características do implantado em São José dos Campos, que é coordenado pela indústria, academia e governo em prol de um objetivo. A Federação das Indústrias do Estado do Maranhão (Fiema) e seus representantes constituem um pilar sem o qual o projeto não pode decolar”, comentou.

Longa Marcha

A questão tecnológica é o ponto essencial nas conversações com outros país. A Ucrânia é um exemplo disso. O país, que assinou o primeiro acordo para uso comercial da base de Alcântara em 2001, ficou com muitas instalações aeroespaciais da União Soviética. Já o Brasil procurava recuperar terreno, depois de enfrentar sérias dificuldades para dominar o ciclo de combustível de foguetes durante a ditadura, época da Guerra Fria e de alinhamento com os Estados Unidos, país que adota políticas estrita de reserva de mercado na tecnologia espacial, a grande fronteira para o desenvolvimento dos países.

Um pouco antes, em 1997, Brasil e a Rússia assinaram um acordo que previa o lançamento conjunto de satélites e a utilização pelos russos da base de Alcântara. A corporação espacial Roscosmos e a Agência Espacial Brasileira voltaram a discutir a possibilidade da participação russa no desenvolvimento do centro de lançamento de Alcântara em 2018. Acordo semelhante foi firmado, em 1996, com a Argentina e, em 1994, com a China. Na fase inicial da base de Alcântara, em 1991, houve conversações com a União Soviética.

Com a China, a cooperação começou em 1988, com o estabelecimento do acordo para a construção conjunta de dois satélites profissionais de sensoriamento remoto para levantamento de recursos terrestres. Foi definido, à época, como iniciativa pioneira, na cooperação entre países em desenvolvimento em área de tecnologia avançada. Mais tarde, de 1989 a 1992, no governo Fernando Collor de Mello, o acordo foi congelado sob a alegação de falta de verbas. O governo Itamar Franco o retomou com força; a previsão era de que o primeiro foguete seria lançado em 1996. Chamava-se “Longa Marcha”. Mas aí já era o governo FHC e o projeto não decolou.

A relação de vassalagem entre Bolsnaro e Trump turva as águas do debate sobre o acordo. Sem desconhecer esse fato, é preciso examiná-lo à luz dos interesses nacionais, do desenvolvimento do pais e do estado do Maranhão, e dos direitos da população de Alcântara. No debate da votação do acordo na Câmara dos Deputados, as forças patrióticas devem se orientar pela perspectiva de que Alcântara não pode ficar praticamente sem utilização e de que esse projeto deve abrir novas possibilidades para a sua utilização.

Fonte: O Vermelho